terça-feira, 22 de outubro de 2024

Padaria da Madrugada em Jericoacoara recriada em evento


Quem viveu, sabe. Ninguém ficava desamparado ao retornar das festas de forró em Jericoacoara nos anos 1990. Em plena madrugada, funcionava a Padaria Santo Antônio, famosa por fornecer aos clientes, a partir das 2h da manhã, deliciosos pães quentinhos servidos com café – ideal para quem tinha extrapolado no álcool e queria matar a fome.

O estabelecimento abriu as portas em 1995 e, pouco a pouco, tornou-se patrimônio da cidade.  Pautou revistas e jornais nacionais, com exibição inclusive no Globo Repórter. O burburinho, totalmente justificado, rendeu-lhe a alcunha de “Padaria da Madrugada” e abriu espaço para que mais pessoas conhecessem o estilo peculiar de produzir e servir quitutes.

A história começa quando Antônio Marques de Vasconcelos teve a ideia de fabricar pães para sustentar a família. Ele mesmo fez um cilindro de madeira artesanal a fim de produzir as delícias. O preparo acontecia no quintal de casa, debaixo do alpendre, e com auxílio de dois dos 12 filhos, Manoel e Antônio. Ambos já haviam sido funcionários de uma padaria.

Os pãezinhos eram fabricados no início da noite com ajuda de toda a família – incluindo a esposa de seu Manoel, dona Alzira. Os primeiros eram de massa de coco, responsável pelo aroma inconfundível sentido por quem passava ao redor. Conta-se que muitos se aproximavam da cerca de arame farpado só para garantir os pães assados no forno à lenha.

“Tinha até fila para entrar na padaria”, lembra Lucimar Marques, uma das filhas de seu Manoel e dona Alzira. Hoje costureira e presidente do Conselho Comunitário de Jericoacoara, foi ela uma das envolvidas na recriação da Padaria Santo Antônio no último domingo, 20/10, durante o evento Sesc Povos do Mar - Circuito Jeri.


A ação visou resgatar a memória afetiva dos moradores por meio de um dos estabelecimentos mais emblemáticos do município. Foi a segunda vez que isso aconteceu. Na ocasião, a família dos proprietários originais produziram pães e distribuíram a todos os presentes, recriando a atmosfera acolhedora e comunitária de antigamente. Detalhe: de madrugada.

“Embora seja a segunda vez que realizamos essa atividade, cada edição é única devido às novas interações e percepções que surgem. A diferença está nas emoções e experiências individuais de cada participante, que enriquecem a vivência e reforçam a importância de preservar essa tradição”, diz Sabrina Veras, diretora de Programação Social do Sesc.

Tempo passa, memória fica
Hoje ainda existe uma Padaria Santo Antônio em Jericoacoara, mas não pertence à família original nem possui o hábito de abrir durante a madrugada. Funciona apenas durante o dia, com outro cardápio e forma diferente de produzir o pão. Também não está no mesmo lugar da primeira, embora pertença ao mesmo terreno.

Segundo Lucimar Marques – ainda no movimento de recordar a jornada do lugar – inicialmente o pai vendia rosca e um amigo mineiro o incentivou a fazer pão. A peculiaridade do primogênito consistia em investir na simplicidade e na criatividade. Não sem motivo, aos poucos foi capaz até de criar sabores específicos. Pães de chocolate, de banana e com queijo fizeram a festa de muita gente voltando do forró.

“Com o passar do tempo, meu pai, já cansado da idade, entregou a padaria aos filhos para que continuassem com os negócios. Mas cada um fez outras escolhas, e há oito anos o estabelecimento fechou”, divide, feliz pela oportunidade de resgatar essa trajetória mais uma vez. Para ela, sobretudo após o falecimento dos pais, em 2020, é privilégio.

“No ano passado tinha mais de 200 pessoas querendo um pãozinho. Nossas memórias vêm dos troncos velhos. Hoje, somos os galhos que ainda estão aqui. Isso fará a história ser compartilhada entre nossos filhos e netos, as folhas dessa história”.

Manter viva a tradição

Sabrina Veras destaca que o resgate cultural da Padaria Santo Antônio é fundamental para manter vivas as tradições que moldam a identidade de Jericoacoara. “Preservar a memória é essencial para fortalecer os laços comunitários e garantir que as histórias, práticas e valores do passado continuem a inspirar e orientar as futuras gerações”.

Ela mesma chegou a conhecer a padaria há mais de duas décadas, quando visitou Jericoacoara como turista com um grupo de amigas. À mente, vem a expectativa de aguardar a abertura do estabelecimento nas primeiras horas da madrugada.

“Ao chegarmos, encontramos não apenas pães frescos e deliciosos, mas também uma comunidade unida, envolta em um espírito de amizade e solidariedade. Era um ponto de encontro que refletia a essência cultural de Jericoacoara, proporcionando uma experiência autêntica que desejamos reviver e compartilhar com todos”. Tem dado certo.

Diário do Nordeste

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